Karina Kuschnir
Sou meio pé-frio para eventos acadêmicos. Outro dia aceitei participar de um que estava o maior sucesso. Plateia cheia, palestrantes chiques de várias partes do mundo, todo mundo se sentindo. Mas chegou a minha vez de falar: penúltima sessão, bem no dia-em-que-ninguém-aguentava-mais; as pessoas importantes pediram desculpas pois-tinham-outros-compromissos, as coordenadoras cataram estagiários para sentar nas cadeiras vazias…
Mas sou uma professora com brios e sigo em frente! A palestra deveria ser sobre como realizar uma boa pesquisa em Ciências Sociais. Transformei numa uma espécie de guia de auto-ajuda para jovens pesquisadores. Estas são mais ou menos as palavras que falei (e os desenhos que mostrei):
“É muito bom estar numa sala com pessoas iguais a mim: todos ganhando pouco, trabalhando muito e sem a menor certeza de ‘pra que serve’ essa profissão…
Vou falar um pouco da época em que estava fazendo mestrado e doutorado, já que essa é uma oficina de alunos de pós-graduação. Mas já vou avisando que não sou a pessoa mais indicada para falar sobre como fazer uma boa pesquisa… Quando entrei no mestrado, meu único objetivo era ganhar uma bolsa! Quer dizer, no fundo, eu queria deixar de ser estagiária de jornalismo… Na minha época, o estagiário de jornalismo passava o dia todo ouvindo o rádio da polícia (o que era proibido) e ligando para os bombeiros para saber se havia alguma tragédia na cidade. Não era a tarefa mais criativa do mundo.
Apesar disso, na minha curta carreira, aprendi a diferença básica entre jornalismo e antropologia: numa redação, escrevemos praticamente o mesmo texto curto todos os dias, com nomes de pessoas diferentes. Nas ciências sociais, tomamos um mesmo grupo de pessoas como tema e escrevemos todos os dias um texto sobre elas que não acaba nunca!
Quando fui estudar para o mestrado, meu maior desafio foi não dormir lendo Marx. Li aquele capítulo do Capital sobre o fetichismo da mercadoria e pensei: ferrou! Não entendi nada. Por sorte, a Maria Claudia Coelho era minha professora na PUC e se dispôs a traduzir aquilo pra mim. E não é que o texto caiu na prova? Uma professora durona estava na banca e me perguntou: porque você escolheu Marx para responder essa questão? Respondi a verdade: não tinha entendido nada quando li pela primeira vez, e depois achei genial – era uma questão de honra enfrentá-lo na prova! (Só não falei que o mérito era todo da Maria Claudia, pois não ia pegar bem…)

Aprendi
muito com as minhas gafes no primeiro semestre no Museu Nacional.
Imaginem vocês que coloquei no meu currículo que sabia tocar violão!
(Não, não tinha Lattes naquela época.) E num encontro de encerramento do
primeiro período, ouvi um pessoal falando sobre uma tal de “ABA” e não
tive dúvida: ‘professor, o que é ABA**?’ Meus colegas de turma vinham
da UFF, do IFCS e da graduação em antropologia na Argentina! Todo mundo
discutia a hermenêutica maussiana e a cismogênese… (**Associação
Brasileira de Antropologia)
Enquanto isso, à tarde e à noite, eu ia para a redação da antiga rádio Jornal do Brasil trabalhar em matérias sobre a Guerra do Golfo, a construção da Linha Vermelha e os efeitos da Queda do Muro de Berlim. A agilidade desse tipo de trabalho me dava alguns trunfos, não posso negar.

Um dia, tive que apresentar um seminário sobre o Homo Hierarquicus do Louis Dumont para a aula do professor Gilberto Velho. Ele era exigentíssimo mas, ao invés dos 20 minutos que me cabiam, gastei uns 27 ou 30… Terminei o mais rápido que pude, já me explicando: ‘desculpe, professor, demorei um pouco mais do que deveria porque esqueci todas as minhas anotações em casa’. A turma fez um grande ohhhh e de repente virei uma heroína!
Enquanto isso, à tarde e à noite, eu ia para a redação da antiga rádio Jornal do Brasil trabalhar em matérias sobre a Guerra do Golfo, a construção da Linha Vermelha e os efeitos da Queda do Muro de Berlim. A agilidade desse tipo de trabalho me dava alguns trunfos, não posso negar.

Um dia, tive que apresentar um seminário sobre o Homo Hierarquicus do Louis Dumont para a aula do professor Gilberto Velho. Ele era exigentíssimo mas, ao invés dos 20 minutos que me cabiam, gastei uns 27 ou 30… Terminei o mais rápido que pude, já me explicando: ‘desculpe, professor, demorei um pouco mais do que deveria porque esqueci todas as minhas anotações em casa’. A turma fez um grande ohhhh e de repente virei uma heroína!
Segunda
lição aprendida: faça o seu trabalho, entregue o que você se
comprometeu a entregar no prazo, mesmo que o resultado não seja
perfeito.(Sempre se pode mandar anexos e notas depois!)
Isso
vale também para a escolha dos temas de pesquisa. No jornalismo diário,
somos obrigados a enfrentar qualquer pauta, sem tempo para
questionamentos filosóficos. Já nas Ciências Sociais… deixa pra lá.

Na
época em que tive que escolher um orientador, expliquei para o
Gilberto Velho que não poderia ser orientanda dele de jeito nenhum.
Falei que não sabia nada de antropologia, nem o básico do básico. Mas
ele me respondeu, o que se tornou a Terceira lição aprendida: “você sabe escrever, e isso é 50% do trabalho do antropólogo”
Minha sorte foi que logo no curso seguinte que fiz com ele, aprendi o segredo dos outros 50%: Para fazer antropologia bastava ficar o dia todo parada numa esquina, me enturmar com jovens desocupados e escrever um diário sobre isso! Quarta lição, com ajuda de William Foote-Whyte.
Nessa altura, eu sofria muito para fazer os trabalhos de mestrado.
Muito! Eu não via sentido naquilo. Tudo me parecia tão inútil… Meu
primeiro trabalho foi: “O conceito de nação na obra João Ubaldo Ribeiro
em diálogo com Gilberto Freyre e outros autores”. No primeiro rascunho,
fiz assim: revi toda a teoria que tinha lido nos primeiros quatro meses
do curso e escrevi uma lista de 54 tópicos para abordar no trabalho.
54! A sorte foi que nessa altura eu já tinha tomado outra providência
importantíssima para a carreira acadêmica: arranjei amigos mais
experientes do que eu! No final, dos 54 tópicos sobraram 3!
Quinta lição aprendida: na hora de fazer um trabalho, comece pensando pequeno. Quase sempre é melhor dizer muito sobre poucos temas do que o contrário. Felizmente, naquela
época, a pressão para escolher um tema para a dissertação era menor do
que hoje. Só me decidi a trabalhar com políticos no final do primeiro
ano do mestrado. Me pautei pelo que achava que seria uma ‘pesquisa
útil’. Acho que estava totalmente errada.
Hoje penso que todas as pesquisas são úteis, (ou quase todas), pois independentemente do tema, no fundo, a grande utilidade de uma pesquisa inicial é formar um pesquisador. (Sexta lição!)
Gilberto Velho acabou por decidir ser meu orientador, sim. Ele nunca deu
muita bola para fórmulas metodológicas. Era como aqueles figurões de
Oxford para quem o Evans-Pritchard foi perguntar o que devia fazer
quando chegasse nos Azande: “seja um cavalheiro” e “não haja como um
perfeito idiota”, foram os melhores conselhos. Ele próprio sempre
misturou muitas técnicas nos seus trabalhos, e nosso grupo de
orientandos era um exemplo dessa diversidade.
Minha sorte foi que logo no curso seguinte que fiz com ele, aprendi o segredo dos outros 50%: Para fazer antropologia bastava ficar o dia todo parada numa esquina, me enturmar com jovens desocupados e escrever um diário sobre isso! Quarta lição, com ajuda de William Foote-Whyte.


Hoje penso que todas as pesquisas são úteis, (ou quase todas), pois independentemente do tema, no fundo, a grande utilidade de uma pesquisa inicial é formar um pesquisador. (Sexta lição!)

Lição número sete: Tínhamos liberdade para experimentar e nos reuníamos semanalmente num espaço de troca, respeitoso e amigável. E
esse é um segredo que não sei se consigo bem explicar: simplesmente não
havia nos grupos de orientandos do Gilberto a famosa “feroz competição
acadêmica”. Ao contrário, talvez a enorme exigência dele favorecesse em
nós o espírito solidário! Nossas
experiências envolviam observação participante, sim, mas também
entrevistas longas ou curtas, fontes impressas, fontes históricas,
imagens, filmes, diagramas, mapas, indicadores sociais, estatísticas
eleitorais, fontes comparativas, teoria literária, sociológica,
formalismo russo, folclore, urbanismo… O computador pessoal era uma
novidade… mas cheguei a utilizar softwares de análise de conteúdo e por
pouco não aprendi um sobre estudo de redes…
Que
bom que não consegui. No doutorado, escrevi eu mesma uma pequena
programação de software para lidar com meus dados de campo e de
entrevistas. Mas tanto tempo no computador acabou me gerando uma
tendinite tão grave que 90% da redação das 450 páginas da tese foi feita à mão.

Lição número 8: computador demais sempre atrapalha. Seja no sentido mais direto, do sofrimento que gera no corpo do pesquisador; seja no sentido mais indireto, que é o excesso de dados que acaba por promover. Só para dar um exemplo, em 1991, ainda quando a internet se chamava bitnet e estava engatinhando nas universidades americanas, descobri um tesouro! Uma base de dados chamada Sociofile. Era uma espécie de Google para procurar resumo de artigos acadêmicos. Perdi semanas naquilo, separei uma lista fantástica de centenas de artigos, classifiquei por temas e… me perguntem quantos textos eu realmente li daquela lista? Uns dois ou três. Não deu tempo.
Lição número 9: referências bibliográficas demais atrapalham. No meio dessas experimentações todas, acho que tive sorte de passar por temas, lugares e pessoas muito diversos. Fiz pesquisas com elites, em casas legislativas, em favelas, em subúrbios e na Zona Sul, em locais de alta criminalidade, ou com movimentos sociais, em locais com alta escolaridade e renda.
Os políticos na minha opinião são o segundo pior grupo para se estudar.
Eu achava que eram os piores: tem até um ditado russo: ‘você sabe quando
um político está mentindo? Quando ele abre a boca.’ Eles
nunca estão disponíveis, nunca querem te receber; quando te recebem
estão ao telefone, quando marcam, esquecem, e quando lembram, não dá
mais tempo. Eu morria de inveja de uma amiga que estudava
velhinhos… Eu pensava ‘que maravilha seria ter aqueles informantes’, tão
dedicados e solícitos, dispostos, simpáticos e com tempo! Até que minha
amiga, sabendo dessas fantasias, foi logo me desiludindo: ‘tá maluca?
Velhinho é o pior tema do mundo: primeiro, porque eles não param nunca
de falar. Segundo, porque eles morrem no meio da sua pesquisa!’
Ok, agora falando sério. A coisa mais importante que aprendi com todos esses temas e experiências foi:
Lição número 10: uma boa pesquisa exige paciência, curiosidade e foco. Quer
dizer, paciência é só uma palavra bonitinha para não dizer: ‘enfrente o
tédio’! Então, reformulando: uma boa pesquisa exige o tédio, aquele
tempo em que você acha que
não está fazendo nada, em que você se permite “se deixar ficar” junto
ao universo de pessoas (ou textos) que escolheu para pesquisar. (Eu não
disse que era só ficar parada numa esquina?)

Lição número 8: computador demais sempre atrapalha. Seja no sentido mais direto, do sofrimento que gera no corpo do pesquisador; seja no sentido mais indireto, que é o excesso de dados que acaba por promover. Só para dar um exemplo, em 1991, ainda quando a internet se chamava bitnet e estava engatinhando nas universidades americanas, descobri um tesouro! Uma base de dados chamada Sociofile. Era uma espécie de Google para procurar resumo de artigos acadêmicos. Perdi semanas naquilo, separei uma lista fantástica de centenas de artigos, classifiquei por temas e… me perguntem quantos textos eu realmente li daquela lista? Uns dois ou três. Não deu tempo.
Lição número 9: referências bibliográficas demais atrapalham. No meio dessas experimentações todas, acho que tive sorte de passar por temas, lugares e pessoas muito diversos. Fiz pesquisas com elites, em casas legislativas, em favelas, em subúrbios e na Zona Sul, em locais de alta criminalidade, ou com movimentos sociais, em locais com alta escolaridade e renda.

Ok, agora falando sério. A coisa mais importante que aprendi com todos esses temas e experiências foi:

Eu
tenho um amigo que seguia essa regra, mas à sua maneira: passou mais da
metade do seu mestrado sentado na mesa de um bar perto da universidade!
Era um tédio bem divertido, digamos. E depois ele acabou fazendo uma
dissertação incrível sobre como a pesquisa não deu certo! Hoje ele é um
excelente professor doutor numa universidade ótima.
Talvez
uma pesquisa seja um longo e paciente processo de aprender a
olhar/enxergar, ouvir/escutar, interagir/dialogar com o campo (ou mundo)
suscitado pelo tema que você escolheu. É estranho que eu tenha partido
do que aprendi com Gilberto Velho para chegar a essa conclusão. Ele era a
pessoa mais impaciente e ansiosa que já conheci na vida! Ai de quem não
estivesse na aula dez minutos antes de começar. E todas as lendas de
que ele chegava ao Museu Nacional às 7:15h da manhã, atendendo
telefonemas com voz de “múmia” são verdadeiras. Era uma tortura para ele
esperar até as 7:59 – já tarde nos seus parâmetros – para ligar e
fiscalizar se já estávamos de pé e operantes!
Mas
posso dizer que ele tinha um outro tipo de paciência, que se
materializava através de duas práticas constantes: a curiosidade
infinita pelo mundo, o que o levava a respeitar todas as fontes de
conhecimento; e a capacidade de focar nesse processo de conhecimento
como se não houvesse nada mais importante no mundo a fazer. Era uma
curiosidade que o levava a ser capaz de ir ao baile funk, ao terreiro de
umbanda, ler 300 páginas de um copião de tese num dia só, orientar
pesquisas sobre astrologia, atores de cinema pornográfico e
representações teatrais sobre a cidade no século XIX.
No
meu caso, aprendi a praticar essas três coisas (paciência, curiosidade e
foco) muito mais depois que me tornei mãe e me envolvi num trabalho
voluntário para apoio a mulheres que desejam amamentar. Durante pelo
menos dez anos coordenei grupos onde a principal tarefa era ouvir e
dizer ‘hã hã’, ‘sim, entendo…’, ‘como foi isso, me conte…’, e devolver
perguntas complicadas com outras simples ‘como você responderia essa pergunta…?’
Tive
a sorte de estar num grupo que definia tudo isso como ‘dar apoio’ e
‘suporte’ . E qual não foi a minha alegria quando um dia descobri que
era exatamente essa a técnica de entrevistas que o Howard Becker
defendeu em seu livro sobre metodologia… Diga o mínimo e ouça o máximo…
Depois
desse tempo de pesquisa, escuta e convívio, há que se percorrer ainda
um longo caminho. Só que essa é a parte divertida! Fica para a próxima
palestra. Obrigada. E agora vamos às perguntas de vocês!” (E foi difícil
arrancar umas perguntas, porque os poucos que sobraram estavam com
fome, claro.)
Sobre os desenhos: Todos foram feitos na App Paper (53) no Ipad com canetinha Bamboo.
Agradecimentos: Agradeço
à Julia O’Donnell e à Mariana Cavalcanti pelo convite para a palestra; e
à Bianca Freire-Medeiros pelos êêêê entusiasmados. Aproveito para
desejar que elas tenham mais sucesso na escolha dos convidados para a
próxima vez!