domingo, 15 de abril de 2012

Gilberto Velho (1945-2012)

Gilberto Velho, por Karina Kuschnir
Eu gostaria de poder escrever que estou sem palavras nesse momento. Mas estar "sem palavras" seria o oposto do que aprendi com ele. Gilberto sempre tinha algo a dizer para os amigos nos momentos mais difíceis. E era no momento exato, nunca no dia seguinte. Na emoção dessa perda, registro aqui algumas lembranças em sua homenagem.

Como disseram Celso Castro e Hermano Vianna, para ele, a antropologia não era o centro do universo. Fazia parte de uma busca pelo conhecimento muito mais ampla, que incluía história, arte, literatura, e a admiração por áreas como a matemática e a filosofia. Não se tratava de uma retórica, mas de uma prática que tinha sempre em vista comparar e colocar os dados em perspectiva. Isso significava que nós, seus orientandos, de repente, tínhamos de interromper nossas pesquisas para ler as memórias de Tarquínio de Souza ou estudar a fundo os jovens turcos, ainda que estivéssemos fazendo trabalho de campo num subúrbio carioca. 

Não vou me estender sobre a importância de sua vida acadêmica ou sobre sua dedicada atuação para o avanço das instituições científicas brasileiras. Basta ler com atenção seu imenso currículo Lattes,  onde o vemos numa alegre fotografia, tirada nos Jardins da Princesa, ao lado de sua sala no Museu Nacional, no dia em que realizamos a segunda etapa da entrevista sobre sua vida e carreira para o projeto Cientistas Sociais - Histórias de Vida.

Prefiro lembrar de como nos divertíamos com seu humor peculiar, como tão bem escreveu Peter Fry, no texto em sua homenagem para a Associação Brasileira de Antropologia. Quando falava de sua juventude, ou dos primórdios da carreira, acrescentava sempre seríssimo: "Mas isso foi no século treze". Aos jovens alunos do PPGAS, cobrava: "Já aprenderam a cantar o hino da antropologia?" E entoava, operísticamente: "Estranhar, relativizar... " Gostava  de nos deixar atônitos com o horário de reuniões e encontros. Depois de consultar sua agendinha preta, dizia: "ok, terça-feira, às 8 horas e 47 minutos". Nos animava com os carimbos da "Venerável Sociedade das Capivaras", caçando insetos com sua gigante espada de madeira, falando de seus tempos de "campeão de esgrima", passando trotes, citando batalhas do Império Bizantino ou contando histórias misteriosas sobre como o cérebro de Euclides da Cunha foi parar nas aulas do Museu Nacional. 

Tudo isso vinha junto com uma obsessiva disciplina para orientar, que incluía ler capítulos de tese na mesma tarde em que eram entregues, ligar para saber se estávamos trabalhando às 7 da manhã e marcar bancas com quatro meses de antecedência. Cobrava, reclamava e brigava -- muito. Mas tentava compensar essa rigidez com um imenso afeto e vontade de nos ver crescer, como tão bem lembrou Maria Laura Cavalcanti, em sua breve e linda homenagem hoje, no velório. Gilberto nos acolhia nas dificuldades e vibrava com nossos sucessos. É verdade que resistia a mudanças, às vezes com ferocidade. Mas frequentemente mudava de ideia, aceitando e até se divertindo com propostas as mais inusitadas, desde mudar radicalmente o tema de uma pesquisa até decidir a data de uma defesa de tese com ajuda de um mapa astrológico. 

Entre os muitos que o perderam, é difícil separar quem são as centenas de orientandos, alunos, colegas ou amigos. Na vida dele, essas categorias estavam todas misturadas. "As pessoas são complexas", ele gostava de dizer; "não devemos congelar as identidades". Para estar com todos, adorava marcar reuniões, festas, aulas, palestras, almoços e jantares. Nestes, invariavelmente deveríamos aguardar pela chegada de uma "ilustre antropóloga húngara" -- mais uma de suas brincadeiras, que, mesmo depois de conhecida, nos divertia pelo desafio de adivinhar quem faria o papel de convidado-surpresa. Por meio desses encontros, surgiam incontáveis relações: amizades, trocas profissionais, viagens transatlânticas, orientações, pesquisas, publicações, livros e até namoros e casamentos.


Termino agradecendo a todos pelos abraços, telefonemas, e-mails e pensamentos solidários. Embora nada possa reverter essa perda, ajuda muito saber que somos tantos que a sentimos.


Karina

Não deixem de ver: 
Convite homenagem PPGAS 12/junho/2012 novo
Jorge Zahar Editora - atualizada
Hermano Vianna - O Globo
Luiz Fernando Duarte - Por quem os sinos dobram novo
Luiz Fernando Duarte - Folha de São Paulo
Yvonne Maggie - G1
Centro Nacional de Folclore - Homenagem a Gilberto Velho (vejam o PDF)

Em Portugal:  Matéria no Jornal "Público" novo










 

Outras homenagens:
Associação Brasileira de Antropologia - ABA
Ciência Hoje On-line 
CIES - Instituto Universitário de Lisboa

Howard S. Becker
Jornal da Ciência - SBPC
PPGAS/Museu Nacional - Mural de Memórias 

Prosa e Verso - O Globo
(Vejam também os comentários a essa postagem)

Artigo Gilberto Velho sobre sua carreira.
Revista Vibrant - Dossier organizado por Gilberto Velho e Karina Kuschnir.


Entrevista e Memorial - Projeto Cientistas Sociais.
Entrevista História de Vida - Revista Estudos Históricos.
Encontros com os autores - Gilberto Velho - Anpocs.

2 comentários:

LAU - Laboratorio de Antropologia Urbana IFCS/UFRJ disse...

Howard S. Becker, por intermédio da revista DILEMAS - enviou uma carinhosa homenagem a Gilberto Velho. Vejam no site da revista: http://www.dilemas.ifcs.ufrj.br/gilberto_velho_45.html

LAU - Laboratorio de Antropologia Urbana IFCS/UFRJ disse...

Reproduzo abaixo o texto de Luiz Fernando Duarte para a Folha de São Paulo

Gilberto Velho: intelectual, publicista.
Em 1973 foi publicado um livro curto, de aparência despretensiosa, chamado A Utopia Urbana:
um estudo de antropologia social. Seu autor era um jovem intelectual, recém chegado de um
doutorado nos EUA, professor do então recente programa de pós-graduação em antropologia
social do Museu Nacional (RJ). Gilberto Velho começava ali uma brilhante carreira acadêmica,
associada a uma antropologia urbana que ele foi pioneiro em construir no Brasil.
Aquele trabalho deslocava o foco da pesquisa para o cerne urbano de uma sociedade em
rápida modernização, às voltas com toda sorte de problemas sociais, com o autoritarismo
político em seu ápice. Essa complexidade, essa instabilidade, exigiam um esforço de
interpretação que não recorresse apenas às grandes teorias, mas fosse às pessoas, as ouvisse e
tentasse compreender suas motivações e impulsos. A Utopia Urbana se baseava em
entrevistas diretas e densas com os moradores de um prédio de apartamentos da frenética
Copacabana, gente que se deslocara de bairros distantes para compartilhar das benesses
cobiçadas da Zona Sul carioca: novas formas de lazer, de sociabilidade, de recursos
diferenciados de vida.
Creio que o último de seus trabalhos tenha sido um artigo ainda inédito sobre as relações
entre os patrões de classe média e seus trabalhadores domésticos. Desvela aí, com o tom
terno das evocações pessoais, a complexidade das tensas negociações de realidade que fazem
se cruzar as diferenças sociais e culturais, o ethos econômico e religioso divergente, os
confrontos entre projetos de vida e trajetórias de sobrevivência contraditórias.
Ele acaba de falecer. É uma grave perda pessoal para todos os que o conhecemos; mas é
sobretudo a perda de um combatente aguerrido, que, nas páginas dos jornais, nas aulas
memoráveis, nos foros coletivos ou nos artigos científicos, nunca deixou de unir a competência
acadêmica ao compromisso comum. Ele, que tanto estudou os projetos de vida, legou-nos o
seu, próprio, como exemplo.
Luiz Fernando Dias Duarte
Professor do Museu Nacional / UFRJ; Vice-Presidente da Associação Brasileira de Antropologia